Em 27 de novembro de 2024, o juiz Marco Gattuso, do Tribunal Ordinário de Bolonha, levantou uma questão de ilegitimidade constitucional relacionada aos processos de reconhecimento da cidadania italiana. Ele argumenta que o reconhecimento da cidadania apenas pela existência de um antepassado italiano, mesmo que distante em muitas gerações, para indivíduos sem qualquer vínculo cultural, linguístico ou territorial com a Itália, pode ser incompatível com os princípios constitucionais italianos.
A questão surgiu a partir de um caso envolvendo doze brasileiros de uma mesma família que solicitaram o reconhecimento da cidadania italiana com base em uma antepassada nascida na Itália em 1876. Essa antepassada emigrou ainda jovem, e os requerentes não possuem outros vínculos significativos com a Itália além dessa ascendência distante.
O juiz Gattuso considerou que esse caso exemplifica a problemática da aplicação irrestrita do jus sanguinis, onde a cidadania é reivindicada por descendentes de italianos que, ao longo de várias gerações, perderam qualquer ligação efetiva com o país. Ele argumenta que essa prática pode ser vista como uma “ficção” jurídica, não respaldada por um vínculo real com a comunidade nacional, e que tal reconhecimento automático da cidadania comprometeria o direito do povo italiano de exercer sua soberania.
Diante disso, o juiz encaminhou a questão à Corte Constitucional Italiana para avaliar a compatibilidade da legislação atual com os princípios constitucionais, especialmente no que tange à definição de cidadania e à proteção da identidade nacional.
Como funciona a questão de constitucionalidade na Itália?
Na Itália, quando um juiz acredita que uma norma ou procedimento pode ser incompatível com a Constituição, ele tem o direito de levantar uma questão de constitucionalidade perante a Corte Constitucional. Essa corte, que é o mais alto órgão de justiça constitucional do país, analisa o caso e decide se a norma ou procedimento em questão é ou não inconstitucional.
Se a Corte Constitucional declarar que há inconstitucionalidade, a norma ou prática é considerada inválida e precisa ser ajustada. No entanto, até que a decisão seja tomada, as regras atuais continuam em vigor. É por isso que, enquanto o tribunal avalia o caso, os processos podem sofrer atrasos pontuais, mas não são anulados.
Impactos potenciais nos processos de cidadania italiana
A questão de constitucionalidade levantada pode gerar suspensão temporária, enquanto a Corte Constitucional Italiana avalia o tema, apenas dos processos de cidadania que estejam designados ao juiz Marco Gattuso do Tribunal de Bolonha, já que foi ele quem enviou a questão constitucional à Corte.
Contudo, é importante esclarecer que essa suspensão não se aplica automaticamente a todos os processos de cidadania na Itália, mas apenas aos casos designados ao juiz que levantou a questão. Portanto, os impactos são localizados e não afetam, de forma imediata, o sistema como um todo.
Por que acreditamos que a Corte Constitucional não declarará a inconstitucionalidade
Nossa análise fundamentada indica que a Corte Constitucional Italiana dificilmente declarará a inconstitucionalidade levantada pelo juiz Marco Gattuso. Entre as razões que sustentam essa avaliação, destacamos os seguintes pontos:
1. Previsão clara na Lei de Cidadania Italiana (Lei nº 91/1992)
A Lei nº 91/1992, que regula a cidadania italiana, adota explicitamente o princípio do jus sanguinis, conferindo o direito de cidadania aos descendentes de italianos sem limitação de gerações. Esse texto legal reflete a vontade legislativa de reconhecer e valorizar os laços familiares e históricos com descendentes, independentemente de sua residência ou cultura atual. A Corte Constitucional tende a respeitar o texto e a intenção do legislador, exceto em casos de evidente violação de direitos constitucionais, o que não parece ser o caso aqui.
2. Jurisprudência consolidada
Há décadas, o princípio do jus sanguinis tem sido aplicado de maneira consistente nos tribunais italianos, reforçado por decisões de tribunais superiores (Corte di Cassazione) superiores que reconhecem sua legitimidade. Não há precedentes que questionem de forma significativa essa interpretação, o que fortalece a ideia de continuidade e estabilidade jurídica.
3. Valorização histórica da diáspora italiana
A legislação de cidadania foi criada, em grande parte, para reforçar os laços com a vasta diáspora italiana espalhada pelo mundo. Estima-se que mais de 80 milhões de pessoas em diversos países descendem de italianos. Essa política busca manter uma relação simbólica e cultural com essas comunidades, reconhecendo sua importância histórica e econômica para a Itália. Limitar o acesso à cidadania nesse contexto poderia ser considerado um retrocesso nas políticas de valorização da diáspora.
Conclusão
Portanto, considerando o texto da lei de cidadania italiana, a jurisprudência existente e a importância histórica da diáspora italiana, acreditamos que a Corte Constitucional reafirmará a legitimidade do sistema atual baseado no jus sanguinis. Isso garante a continuidade de um direito fundamental que conecta milhões de descendentes ao patrimônio cultural e histórico da Itália.